quarta-feira, 30 de maio de 2007

Caro amigo Ausente,

Diante de sua insistência para saber como anda minha nova rotina depois que entrei na universidade, resolvi te escrever. Foi delicadeza para minha alma receber notícias tuas.

A vida passa e não carrega consigo a impressão de que qualquer gesto é tentativa de preencher o tempo. O imperativo do mundo não mais ordena, ele agora sugere (tenha boa conduta, seja ético, compre caráter). São apenas sutilezas, você sabe como essas coisas são. Ande devagar e na linha. Ande ébrio para conseguir se equilibrar na linha do horizonte. Eu aprisionei o tempo em um copo de vinho.

Tenho ido constantemente à lanchonete do CHLA só para ter a sensação de voltar todos os dias aos anos 70, regressar a um passado do qual não fiz parte. Sento numa daquelas arcaicas cadeiras e fico olhando para as velhas fotografias de sanduíches e para a desfigurada tabela de preços em cima do balcão. Sinto-me Marcélia Cartaxo interpretando Macabéa no filme A Hora da Estrela, em plena efervescência do Rio do início dos anos 80.

Sabe, meu amigo, ainda não esqueci o Rio de Janeiro, com suas árvores centenárias testemunhando o cotidiano de cada um de nós em Vila Isabel; do Rio com cheiro de pães frescos da manhã se amalgamando à fumaça dos carros, que cedo acordam a cidade (como se ela dormisse!). Sinto falta dos prédios antigos da Tijuca, diante dos quais eu parava para observar as pequenas janelas e a pintura simples. A obsoleta arquitetura nem contemplava os azulejos, e eu adorava enxergar aqueles prédios crus, despidos de ladrilhos coloridos. A ausência de varandas me extasiava. Varandas sempre são meios-termos entre o nosso lar mais interior e a concha que abriga o mundo – e eu não gosto de meios-termos.

Termos pela metade, expressões inacabadas, palavras rabiscadas em pedaços de papel. É assim como o movimento se congela no frenesi de meu cotidiano. Nesses últimos tempos, por mais estranho que isso lhe pareça, tenho ido à UFAL para voltar ao passado por meio daquela obsoleta lanchonete e para ver o crepúsculo da janela em frente à sala em que estudo. Vez por outra, fricciono-me contra o vidro e fico tentando imaginar aquela paisagem, com seus campos maltratados recebendo os últimos raios de sol, sendo vista por Genet. Talvez eu faça analogia do ocaso da UFAL ao escritor francês porque a história de vida dele tem os mesmos contrastes daquele lugar. Os campos achacados são os reformatórios e prisões por onde passou o filho de uma meretriz com um desconhecido; o pôr-do-sol, as obras do andarilho que escreveu suas reminiscências em “Diários de um Ladrão”.

Hoje eu penso que cada um de nós somos um pouco ladrões de nós mesmos, pois de alguma forma roubamos uma parte de nós a cada dia. Alguns fazem com violência exposta; outros, com terrível delicadeza. Só agora, no fastígio de minha mocidade, tomo grande consciência de que Genet, Rimbaud, Ginsberg, Kerouac e tantos outros malditos foram mais ladrões do que nós, porque eles roubaram de si mesmos, de suas essências para nos oferecê-las. O mundo não soube recompensá-los. Se eles pecaram por terem doado demais de si, pecamos porque não sabemos o que fazer com os pedaços que arrancamos de nós.

Já faz um bom tempo que a Arte vem suprindo meu vazio existencial, ou o encobrindo de mim. Mas finda o momento em que esse disfarce tem dado certo. Eu sou uma solitária pintora de letras. Em cada palavra pintada, a precisão de minhas incertezas, de meu consolo. Eu vivo em potes de tinta, beijando cores e formas que se contrastam com o mundo que cospe a aspereza da realidade. Talvez seja acreditando que estamos dentro de uma imensa bolha de ficção que eu consigo mascar chicle sem me preocupar com a falta de elasticidade desses dias.

Ultimamente, as inquietações e insatisfações parecem estar nos outdoors que olho de dentro do ônibus; parecem se revelar ao mundo em néons espalhados por toda cidade, quando, na verdade, só eu os enxergo. Os ônibus que tomo todos os dias tomam de minha paciência e parecem dirigir minha vida mais do que eu.

Pelo caminho de volta da universidade, vou deixando em cada rua um pouco de minha exaustão. Escancaro-me às ruas para não me enclausurar em minhas avenidas interiores. Tento aprender com o asfalto a ser mais dura com o mundo – o único jeito que encontrei até hoje de defender minha sensibilidade.

Chego. Moro em um prédio que não tem porteiro. Abro e fecho dois cadeados todos os dias. Há dez anos que abro e fecho os mesmos cadeados e só hoje me dei conta que são duas grades que me constroem. Quando eu abro os cadeados, transponho as grades de maneira citadina, lanço-me às ruas e sigo caminhos é que sou alguém. Faço questão de deixar nos compartimentos de meu apartamento aqueles pedaços que arranco de mim todos os dias e que me tornam ladra de mim – eles dizem quem eu sou sem que eu precise ser apenas alguém.

Hoje, quando cheguei da universidade, não acendi a luz; apenas joguei na mesa os livros e a bolsa, tirei o tênis e encostei na parede um vaso de plantas. Liguei o som, Joni Mitchell, claro... E assim finda mais um dia, com estrelas que observo da varanda (sim, aqui raros são os apartamentos sem varandas) me dizendo: "seus olhos estão cheios de lua: brilham, mas precisam de olhos alheios para receber a luz que espalham". Apenas respondo para quem quiser ouvir: "tenha-me, por favor, tenha-me como eu sou".


Grito
na calada da noite dos mudos com voz.

Desvelo,

Presente Ausência.

6 comentários:

(ins)piração disse...

Pessoas, retificações do texto (eu o escrevi de madrugada, por isso desculpem-me a falta de revisão):

- Hoje eu penso que cada um de nós é um pouco ladrão de si mesmo, pois de alguma forma rouba uma parte de si a cada dia.
- o ocaso na UFAL
- eles dizem quem eu sou sem que eu precise ser alguém.

Grata pela compreensão. =)

cibely disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
cibely disse...

Onde estará o nosso maior erro: roubar um pouco de si sem saber como fazê-lo ou roubar um pouco de si, provocando com isso, o caos?
Tem muita gente que se apodera da essência dos outros, da vitalidade de cada um; um sorriso, um abraço,o coração..agem como parte de um mundo ideológico no qual o "roubar" é natural. Seriam essas pessoas, também, "ladões"?

Gaio Catulo disse...

Fazes parecer alguns sítios do chla bastante diversos da realidade entediante do habitual. Aquele restaurante, por exemplo!!!


Dos malditos: ladrões de si mesmos e bem-feitores da humanidade, embora desmerecente esta!!!

cibely disse...

O restaurante do CHLA é
uma abstração da realidade..
só aquele cheiro irritante faz
com que a gente se sinta numa
cidade imaginária. Imagina o resto!

(ins)piração disse...

Cibely, adorei teus questionamentos... Quando citei os "malditos", foi uma sutil metonímia: utilizar a parte (os escritores, no caso) para explicar o todo (do qual nós fazemos parte).

Catulu, soa maniqueísta "ladrões de si mesmos e bem-feitores da humanidade" (lido no sentido: fazem mal a si mesmos e todo benfazejo devotam à humanidade). Quando cito os malditos, quero dizer que eles são tão pecadores quanto nós; almejo romper o limiar que existe entre escritores consagrados e os leitores (sempre tive a impressão de que nossa cultura coloca em um pedestal os famigerados escritores, como se eles estivessem longe de uma realidade que também pode ser alcançada por nós).

Em relação ao CHLA, realmente é uma abstração da realidade, Cibely. A lanchonete, nesse meu texto, é o elemento que diz ao leitor: as coisas são boas e ruins concomitantes (volto a tocar no assunto de extirpar o maniqueísmo), depende de como desejamos enxergá-las em determinado momento.
Talvez o "cheiro irritante", Cibely, do restaurante no CHLA seja mais interessante do que os perfumes franceses "gladiando" na atmosfera de alguma festa de socialites... Risos...

Beijos para vocês.