terça-feira, 12 de junho de 2007

O habito

Como todos os dias dos quais vivi do seu início ao seu fim, acordo... Como todos os dias, nasço com o Sol, o vejo subindo em velocidade milimétrica e já me encontro em pé, cego, meio burro... O hábito se apossa, leva-me ao banheiro, leva-me com pressa e mecanicidade, me leva aos passos do compromisso, leva-me por puro egoísmo, mas me leva... Sento para a janela, o céu escuro começa a se consumir, o róseo consome o negro, e milhões de espaços noturnos são possuídos pelo velho fogo... Não havia céu, era a estrela que se alimentava de toda vida terrestre, e eu tomando o primeiro porre do dia, o primeiro urro do dia, o primeiro desejo... Sim, era destruição! Mas o hábito de tão possesso comandava-me para o enterro, vesti-me soturnamente, vesti-me fúnebre, quase de ironia, e a falta de tempo gritou à pressa... Pressa! Pressa!! Café frio e larguei-me pelo mundo. Já estava na escada quando senti as badaladas da igreja: 06:00! Avançando no concreto, freneticamente, como uma bala, como um estorvo, sem limite, sem perspectiva, avançando para o destino...O tempo pela manhã me parece sempre como uma pequena discussão silenciosa. Todos estão como eu, mecânicos, entristecidos, mas exatos, uns jogando-se contra outros por espaço, por calma, por vaidade e assim começa o movimento viciado, olhares mortos, olhares mortos! Fecho os meus e ouço a respiração ritmada, um estalo, e o pigarro inicia a inquietação...Os homens são movidos de terreno em terreno, eu,eu,eu,eu me perco momentaneamente numa imagem: a criança está sorrindo; está rindo de sua viagem, rindo desse cinza nosso, rindo de tudo, menos dela, ela brilha intensamente e por minutos desconstroi a mentira que chamamos de vida/opção-vida. Mas esse espasmo, não me liberta do hábito - sorrio para criança -, quase por desdém... Continuo, continuamente, re-interado do dever, de ir, de estar, de viver, de mentir, de passar... ar... ar... No caminho, reconheço ninguém, todos são estranhos, todos estão como eu, indo. O sorriso ainda me desconcerta,sinto aquele mal estar de estar junto de tantos outros como eu: humanos. Percebo dentro de mim milhões de estados, um possuindo outro: nojo dissolve náusea; neurose se aglomera em tontura, ressoando em dor, dor,dor; sinto o peso do hábito me controlando – já eram 07:00 – o sorriso ri da hora, ri desse estado, ri do hábito, ri de toda neurose humana, o sorriso ri puramente...Estanco na calçada, sou uma estaca entre tantos homens, não existe nenhum sentimento, nenhuma sensibilidade, o que existe é a culminação de toda minha interioridade para com o mundo: vomito! Por hábito abaixo a cabeça, faço quase uma reverência para o chão, sinto a bile latejando, sinto o fígado estragado, sinto o sorriso sendo feito no encharco de vômito ao contado do asfalto, ele era o sinal que existo- esse impulso irônico em mim? Seria aquele sorriso um convite? O guarda mais próximo chama a minha atenção, pergunta-me “ Sr. há algum problema?”, por hábito digo que não, nego um prazer cristão ao guarda, nego por complacência. Passo assim por uma rua qualquer, o sol agora embandeirado pelo céu anuncia um dia quente, anuncia que irei pingar, anuncia fedores, anuncia outros horrores, anuncia para o contínuo da procissão... Algo me chama ao passar por um beco, não era o verde reluzente do beiral de sua calçada, nem o bêbado caído, nem a curiosidade aflorando, algo quase instintivo, algo prometendo um alívio, algo simples e fugaz! Algo como o sorriso... Me desloco sem hesitação para a fenda, vou para o lado do Sol...

Era manhã, e já se passaram quase nove horas desde que tudo começou, aquele hábito já me repugna, lembro-me agora para sentir tudo e tudo no qual já desejei e passei um dia, preciso me sentir feliz, infeliz, preciso sentir sujo, sujo, preciso lembrar, lembrar para esquecer, esquecer e me amar... amar..

O Sol... Não havia nada mais belo que o sol no beco, ele cegava a minha consciência, ele com toda sua força, me rachava ao meio, e aos poucos – cego – fui para a sombra da única sacada, por instinto respirei buscando alívio, e senti um úmido ar se impregnar nos meus pulmões... Imaginei assim, um fauno jardim, impecavelmente verde, impecável por ser verde, impecável por enfrentar a ira radiosa, imaculado por resistir no vento e ser ar fresco. Abro os olhos - vejo um jardim cuidado sem maiores alardes e uma grande corrente de água jorrando- me concentro na corrente, o seu som me consome, fisguei uma fuga para o hábito, pelo visto – penso – ainda tenho meu lado animal não-domesticado... A visão era água, o ar era água, meu tato suava em água e minha mente fluía. Não tenho certeza de tempo, sei apenas que saciei do transe por uma convulsão, também não sei se havia sido um empurrão ou o hábito exigindo de uma posição mais passiva... Acordo... Acordo... Mas não sou passivo, sigo adentro do beco... Aquele sol está preso pelas nuvens, parece-me tosca a sua luminosidade, é uma cena trágica e cômica ao mesmo tempo... Sigo em frente... Cauteloso... Sutil... Sigo simplesmente... Tombo assim a idéia (NÃO!), palavra (NÃO!!), expressão (NÃO!!!), acusação (NÃOOO!)... Na parede encontrei o maior engano do homem... Signado: AMOR. Numa parede de três metros, reproduzida em milhões de amores vermelhos e brancos, era obsceno a quantidade de amor concentrado, amor dopante, amor chocante, amor mitigante, amor por amor. Não pensei em mais nada: A-MO-ORRRR... Recusei a palavra, recusei por hábito, recusei amar! Disso corri até o fim-início do beco, imaginei indo em direção ao sorriso. Imaginei-o me dizendo: Amor; então fugi. O hábito em seu estado de choque me exigia controle pleno, controle cronológico, controle hermético, exigia-me possessão – mas não acontecia - ... O amor violava a presença, me machucava, aquele sorriso era o sinal dessa minha lástima, o sorriso me amava! Senti uma dor desumana... Eu era então amado, era... Era desalmado, era... Era amalgamado, era... Virei reticência, por eras, por eras...Não via mais senão amor, senti o suor amando minha pele, numa orgia sem fim, era amor carnal, banal, pueril, era tudo! O mendigo amava o chão com seu corpo, e a sombra sob seu rosto o amava, ignorando o seu odor, o trânsito era o amor produzido instantaneamente, cada passo, cada grito, cada encostão, era o jeito humano de se amarem, havia uma guerra imensa nos meus olhos, mas tudo era amor se resumindo no infinito, no atemporal, demasiadamente... Por hábito ficaria em choque, mas não! Fui ao bar, larguei o blazer em cima do chão - percebi o desejo do chão pelo blazer - e quando ia terminar o pensamento, fui esbarrado... Sim, era uma pausa dessa psicose, foi todo tempo necessário para buscar o bar, para me assegurar da alteridade, para me concretizar sujeito necessitava de distorção... Aquilo que entendia por hábito me forçou a parar no terceiro boteco e em contradição, o terceiro me pareceu ser o mais sujo. Fiquei feliz...No bar sentei tonto, pronunciei três palavras inadvertidas: whisky seu garçom! Três palavras que se foram repetindo sem fim, – e para minha surpresa – o hábito pedia seu porre: ele quer gim – é claro que o garçom não entendeu.Tudo em primeiro instante passeava desconexo por todos os lados: a faxineira desbotava ao virar os meus olhos; whisky e gim se pareciam formidavelmente; e o garçom virou barman e isso era mais do que gozado... Tentei assim sentir o local... Mas nada me chamava, nada me hipnotizava, nem o som, nem a puta que se esgueirava no bar, nada, tudo me parecia simplificado, uma calma de sala de espera de hospital... Nada, uma brancura foi se aglomerando ao nada e desse nada veio uma vontade sádica de dor, e quase senti aquilo... Aquele a...

Acordo num quarto, nu, e cheio de marcas, sinto dores em todo corpo, sinto dormência e vejo o relógio: 15:00! – a compulsão re-iniciava -
...
Moreno B.

Rio de Janeiro – 30.12.2005

3 comentários:

Moreno B. disse...

antonio diz:
havia um enterro? e o enterro era o amor?

Moreno diz:
o tema do amor entra no conto como algo que se distoa de toda vivência da personagem durante a história, contudo, o amor é um indicativo-provocação... o que eu deixo implícito é: "até quando o amor não é um hábito?"

Moreno diz:
e daí surge o choque, surge a desconstrução, surge os desvios, surge o caos, surge a aversão ao hábito... mas ao mesmo tempo surge a ironia de que na percepção podemos ser criados para criarmos novos hábitos

Moreno diz:
tanto é que a personagem em estado de choque acaba por ver um fluxo violento de "amor" e ao mesmo tempo esse amor é demasiado por também ser um fruto do hábito

Moreno diz:
e o bar aparece como uma saída... mas é uma saída fora do controle dele

Moreno diz:
talvez eu diria que o conto narra o enterro da vida

antonio diz:
a negação do hábito seria a negação do amor, portanto?

Moreno diz:
negar o hábito seria negar o amor como hábito

antonio diz:
e a luta contra o hábito seria a tentativa de manutenção da vida?

antonio diz:
o hábito de beber, o hábito de levantar...

Moreno diz:
seria, seria um espamo de sorte também, pois o controle pelo hábito se faz no símbolo, no ar, no movimento, no toque, no não-riso, no querer...

Moreno diz:
o hábito de viver o hábito

Moreno B. disse...

Errata:

Espamo = Espasmo.

:D!

Nayara disse...

ameixas
ame-as
ou deixe-as
Paulo Leminski